Palabra Clave (La Plata), abril - septiembre 2024, vol. 13, núm. 2, e213. ISSN 1853-9912
Universidad Nacional de La Plata
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación
Departamento de Bibliotecología

Dosier: Para una nueva historia de las bibliotecas en América Latina:
instituciones, representaciones y prácticas

Entre homens e livros: a Biblioteca do Itamaraty na gestão do José Maria da Silva Paranhos Júnior (Barão do Rio Branco), 1902-1912

Frederico Antonio Ferreira

Arquivo Histórico do Itamaraty, Brasil
Fabiano Cataldo de Azevedo

Área de Pesquisa, Museu Imperial / Instituto Brasileiro de Museus, Brasil
Mariana Acorse Lins de Andrade

Departamento de Biblioteconomia, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Cita sugerida: Ferreira, F. A., Azevedo, F. C. y Andrade, M. A. L. (2024). Entre homens e livros: a Biblioteca do Itamaraty na gestão do José Maria da Silva Paranhos Júnior (Barão do Rio Branco), 1902-1912. Palabra Clave (La Plata), 13(2), e213. https://doi.org/10.24215/18539912e213

Resumo: O artigo apresenta os primeiros resultados de uma investigação desenvolvida no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Patrimônio Bibliográfico e Documental; também é fruto de intenso debate entre os autores. O tema é a Biblioteca Histórica do Itamaraty, instalada na cidade do Rio de Janeiro, Brasil; e vinculada ao atual Ministério das Relações Exteriores. Para essa espécie, do que chamou Matthew Battles, “Bibiografia de uma Biblioteca”, ao estudar, em 2004, a “Widener Library”, objetivou-se deslindar e problematizar, por meio da pesquisa documental, o contexto de sua criação em 1842. A leitura e análise das fontes revelaram a importância de determinados acervos considerados como fundadores, pela força instrumental que imprimiram aos interesses do próprio Ministério, como fez emergir o recorte cronológico desse trabalho, ou seja, 1902 e 1912. Como um dia disse Gabriel Naudé (1600-1653) uma biblioteca sem organização e sem propósito para formação de sua coleção é um mero ajuntamento de livros. Fiando-se nessa premissa, concluímos que durante o período selecionado para este estudo, graças as formas de gestão engendradas por José Maria da Silva Paranhos Júnior, Barão do Rio Branco, livros da BHI passaram a ser instrumentos que subsidiariam processos decisórios da chancelaria, além de adquirir uma face associada à uma unidade de informação.

Palavras-chave: História das bibliotecas, Biblioteca Histórica do Itamaraty, Desenvolvimento de coleções, Barão do Rio Branco, Brasil.

Between men and books: the Biblioteca do Itamaraty under the management of José Maria da Silva Paranhos Júnior (Baron of Rio Branco), 1902-1912

Abstract: The article presents the first results of an investigation carried out within the scope of the Research Group on Documentary Heritage; it is also the fruit of intense debate between the authors. The theme is the Itamaraty Historical Library, located in the city of Rio de Janeiro, Brazil, and linked to the current Ministry of Foreign Affairs. For this kind of what Matthew Battles called "Bibiography of a Library", when studying the "Widener Library" (2004), the aim was to understand and problematise, through documental resources, the context of creation in 1842. Reading and analysing the sources revealed the importance of certain collections considered to be foundational, due to the instrumental force they gave to the interests of the Ministry itself, as well as the chronological cut-off point for this work, i.e. 1902 and 1912. As Gabriel Naudé (1600-1653) once said, a library without organization and a purpose for its collection is a mere collection of books. Based on this premise, we conclude that during the period selected for this study, thanks to the forms of management devised by José Maria da Silva Paranhos Júnior, Baron of Rio Branco, books in the Itamaraty Historical Library became instruments that would subsidies’ the chancellery's decision-making processes, as well as acquiring a face associated with an information unit.

Keywords: History of libraries, Biblioteca Histórica do Itamaraty, Collection management process, Barão do Rio Branco, Brasil.

Entre hombres y libros: la Biblioteca do Itamaraty bajo la administración de José Maria da Silva Paranhos Júnior (Barón de Rio Branco), 1902-1912

Resumen: El artículo presenta los primeros resultados de una investigación realizada en el ámbito del Grupo de Estudio e Investigación sobre Patrimonio Bibliográfico y Documental; es también fruto de un intenso debate entre los autores. El tema es la Biblioteca Histórica de Itamaraty, situada en la ciudad de Río de Janeiro, Brasil, y vinculada al actual Ministerio de Relaciones Exteriores. Para esta especie de lo que Matthew Battles llamó "Bibiografía de una Biblioteca", al estudiar la "Biblioteca Widener" (2004), el objetivo fue indagar y problematizar, a través de la investigación documental, el contexto de su creación en 1842. La lectura y el análisis de las fuentes revelaron la importancia de ciertas colecciones consideradas fundacionales, por la fuerza instrumental que dieron a los intereses del propio Ministerio, así como el punto de corte cronológico de este trabajo, es decir, 1902 y 1912. Como dijo Gabriel Naudé (1600-1653), una biblioteca sin organización y sin una finalidad para sus fondos es una mera colección de libros. Partiendo de esta premisa, concluimos que, durante el período seleccionado para este estudio, gracias a las formas de gestión ideadas por José Maria da Silva Paranhos Júnior, Barón de Rio Branco, los libros de la Biblioteca Histórica de Itamaraty se convirtieron en instrumentos que subsidiarían los procesos de decisión de la Cancillería, además de adquirir un cariz asociado a una unidad de información.

Palabras clave: Historia de las bibliotecas, Biblioteca Histórica de Iamaraty, Desarrollo de colecciones, Barão do Rio Branco, Brasil.

1. Entre homens e livros

É preciso crear uma biblioteca e uma secção geographica na
Direcção do Archivo, como na França, Inglaterra, Alemanha,
Estados-Unidos. (...) Esse é o arsenal em que o Ministro e os
empregados intelligentes e habilitados encontrarão as armas
de discussão e combate” (Carta de José Maria da Silva
Paranhos Júnior a Frederico Abranches, 1902, p. 5).


Ao registrar suas impressões sobre os Estados Unidos, o autor brasileiro Monteiro Lobato afirmava: “Uma nação se faz com homens e livros (…)”. Em outro trecho da obra, o autor complementava: “Nos livros está fixada toda a experiência humana. É por meio delles que os avanços do espírito humano se perpetuam. Um livro é uma ponta de fio (...) (Lobato, 1932, p. 45). Como explicado nas linhas a seguir, a vinculação da existência de um país à determinação de seus homens públicos ao conhecimento – aqui representado pelos livros – não é uma exclusividade norte-americana.

A Biblioteca do Itamaraty, hoje dividida entre a Biblioteca Histórica do Itamaraty (BHI), instalada em um dos edifícios que formam o complexo Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro, e a Biblioteca Azeredo da Silveira, em Brasília, ocupa um lugar de destaque dentre as demais seções dedicadas à gestão de documentos e informação do Ministério das Relações Exteriores (MRE). A maior parte das obras históricas que compõem o acervo está em sua unidade na capital fluminense. Estas, além de representarem um percentual importante de seu acervo, reúnem livros, periódicos e folhetos antigos e alguns raros, compreendendo uma massa documental que vai do século XV ao XIX, preponderantemente – configurando-se como parte importante do patrimônio bibliográfico brasileiro.

Contudo, como qualquer instituição, a BHI é fruto de seu tempo. Ela é o reflexo de diferentes formas de se pensar e entender o mundo, assim como resultado das ações de dezenas de mulheres e homens que durante décadas atuaram na construção e organização de suas coleções. O período mais emblemático de todo esse processo foi entre 1902 e 1912, no qual a Biblioteca do Itamaraty se desvinculou operacionalmente da seção de Arquivo, ganhando espaço e equipe de trabalho próprias e iniciando sua política sistemática de aquisições. Política e administrativamente, tal fase coincide com a gestão de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco (1845-1912), como Ministro de Estado das Relações Exteriores e vai ter nele um de seus principais incentivadores e ator importante na reflexão e formulação dos princípios básicos que marcariam a formação das coleções da Biblioteca.

As origens da BHI remontam aos acervos transferidos pela Secretaria dos Negócios Estrangeiros do Reino de Portugal (1736-1822) quando da mudança de sede do império português de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1808. Neste cenário centenas de documentos, mapas e livros relativos à política externa do reino de Portugal e suas colônias espalhadas pelo mundo, foram trazidos entre 1808 e 1810 (Wilckens, 2005). Com a emancipação política do Brasil em 1822 e a criação de um serviço do exterior independente foram acrescidas novas obras, como resultado da ação diplomática do novo Estado e por doação / aquisição de coleções particulares de personalidades importantes para as relações internacionais do país.

Diante de uma trajetória tão longa e características igualmente peculiares, busca-se aqui desenvolver uma abordagem preliminar das transformações ocorridas durante a gestão do Barão do Rio Branco como Ministro de Estado das Relações Exteriores, especialmente no que tange à formação das coleções da Biblioteca. A aquisição das bibliotecas particulares de Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (1816-1878), o de Joaquim Tomás de Amaral, Visconde de Cabo Frio (1818-1907), além de comporem o núcleo formador da BHI, essas coleções possuem um forte vínculo com a trajetória das relações internacionais brasileiras nas primeiras décadas do século XX e são hoje um elemento importante para a memória e identidade institucional do MRE.

Assim, a escolha do período analisado foi motivada pela data de início da gestão Rio Branco no MRE indo até a inauguração do novo prédio que abrigaria a Biblioteca do Itamaraty – 1916. O cotejamento e estudo dos periódicos se dedicou à compreensão do modo como a Biblioteca e suas coleções foram representadas, assim como o papel desempenhado por ela no MRE e na sociedade carioca de seu período.

Para entendermos a dinâmica da formação das coleções da BHI e o papel do Barão do Rio Branco neste seguimento é necessário perscrutar e avaliar as idiossincrasias do período histórico no qual foi criada. Com Paranhos Júnior, ela ganha novas especificidades, como por exemplo, foram-lhe acrescentadas atribuições derivadas da atuação mais incisiva do Ministério no cenário internacional, especialmente àquelas dedicadas a defesa e manutenção do território.

A ação de navegantes, exploradores e diplomatas em diferentes períodos da formação territorial do Brasil gerou, ou mesmo se valeu, de uma vasta gama de documentos bibliográficos. As estratégias de defesa dos territórios tidos como nacionais entre os séculos XIX e XX, tinham nestas fontes documentais um recurso tático para sua efetiva execução. A utilização satisfatória de obras de valor histórico foi de suma importância para a construção daquilo que viríamos chamar de “corpo da pátria” (Magnoli, 1997). Grande parte delas foram adquiridas, ou recebidas ou mesmo acumuladas pelo serviço exterior brasileiro no exercício de suas funções e juntaram-se aos demais livros já existentes. Ela mesclava características típicas das bibliotecas existentes no Rio de Janeiro do século XIX e veio a incorporar funções relacionadas ao subsídio de dados e informações que permitiriam a tomada de decisão pelos agentes envolvidos com política exterior brasileira.

Como pressuposto tem-se que a formação de acervos bibliográficos visa atender a necessidade de um público específico ao qual ele se destina, as bibliotecas, mais que um mero ajuntamento de livros, podem ser ponto de convergência de informações sobre o mundo, a natureza e a sociedade etc. Elas são lugares ao mesmo tempo dedicados à preservação do patrimônio intelectual acumulado por gerações – servindo assim de locais de memória com valores simbólicos próprios (Nora, 1993) – e também espaços que propiciam novas possibilidades de rupturas no pensamento humano. Um ambiente dialético, em constante movimento e que pode incentivar a novas ideias (Jacob, 2000).

Neste sentido, o acúmulo de obras de diferentes períodos faz com que as coleções da BHI sejam uma “sobreposição” de “camadas de tempos históricos” que não necessariamente se opõem, mas que se suportam e coexistem de modo que cada época deixa suas marcas (Koselleck, 2014). Desta maneira, a formação de suas coleções, seus métodos e processos de trabalho aplicados são retratos da experiência dos grupos sociais que a construíram e de diversas fases destas várias temporalidades pelas quais a instituição passou.

Estudar a trajetória e seu impacto na sociedade na qual está inserida deve ser matéria de reflexão. É preciso, ponderar acerca de suas características, estruturais e conjunturais, e sobre quais fontes de informações históricas possibilitariam essa análise ampliada de sua realidade e de seu papel.

De modo a se entender as rupturas e continuidades expressas na formação de suas coleções e nos métodos e processos de trabalho utilizados na BHI, buscou-se dar ênfase nos elementos materiais envolvidos na sua constituição bem como na relação entre os atores que dela faziam parte. Um contato ambivalente em que sujeitos e objetos se transformavam mutuamente à medida em que tal contato se ampliava e se ressignificava. Para tal é necessário deter-se na análise no contexto histórico no qual estavam envolvidos.

A pesquisa documental possibilita aprofundar dados formais e institucionais presente na ação do Estado – no caso específico do MRE – e como o vislumbre de prismas relacionados à cultura, imaginário e mentalidades dos diferentes agentes públicos envolvidos. A análise crítica das informações trocadas acerca do tema permite que através de seus aspectos jurídico e administrativos, possa-se examinar os diferentes discursos envolvidos na formação institucional e material da BHI.

Foram utilizados documentos oficiais e não-oficiais que pudessem contribuir para compreensão do passado acerca da formação e institucionalização da Biblioteca durante o período entre 1902 e 1912. Foram pesquisados documentos textuais pertencentes aos fundos: Secretaria dos Negócios Estrangeiros do Império (1822-1889), MRE (1889-1959), Fundo Pessoal Barão do Rio Branco (1864-1916), Jansen do Paço (1830-1918), Francisco Adolpho Varnhagen (1646-1896) e Joaquim Thomas do Amaral (1865-1931), que estão custodiados pelo Arquivo Histórico do Itamaraty no Rio de Janeiro – AHI – eles refletem as relações políticas, sociais e ideacionais vigentes no MRE entre a segunda metade do século XIX e primeiros vinte anos do século XX e registram a história administrativa das coleções bibliográficas. Dentro da esfera de fontes não-oficiais deu-se prioridade para matérias jornalísticas veiculadas por periódicos de capitais brasileiras entre 1902 e 1916, que versavam sobre a temática abordada e que permitissem compreender qual era a relevância e a função social desempenhada pela Biblioteca naquele período histórico. Foram analisadas matérias de periódicos fluminenses como o “Jornal do Commercio”, “O Seculo”, “A Noite” e “O Imparcial” e do gaúcho “A Federação”.

No que tange aos registros oficiais, seu uso e a custódia são instrumentos significativos para a ação do Estado e uma de suas principais bases de poder político. A confecção e guarda de documentos escritos seria uma imbricação entre o os elementos simbólicos e os instrumentais dos governos (Chartier, 1993). Na medida em que se responsabiliza pela objetivação de dados sobre o espaço, tanto por meio de representações cartográficas, quanto através das operações de totalização de dados gerais de registros textuais – como censos, estadísticas, agregados econômicos – o Estado faz com que estes documentos se tornem um instrumento de acumulação de conhecimento, centralização e monopolização do poder estatal. Isto faz destes um instrumento de poder do Estado em proveito próprio assim como dos seus agentes (Bourdieu, 1996).

A pesquisa e a análise de periódicos circulantes em capitais de estados brasileiros entre 1902 e 1916 buscou transcender a visão oficial da formação da Biblioteca e demonstrar sua importância e função social, tanto para a chancelaria brasileira quanto no contexto das bibliotecas no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o século XX. Compreende-se que os jornais e revistas são fontes históricas que podem ser entendidas sob diferentes prismas, ou seja, enquanto tentam se apresentar como uma expressão fidedigna daquilo que futuramente viria a se chamar “opinião pública”, são arenas de conflito em que diferentes posições ideológicas se enfrentam no que tange à escolha de pautas e formas de apresentação (Luca, 2011).

Sob outra perspectiva, os periódicos podem ser entendidos como veículos de informação ideologicamente condicionados, economicamente dependentes e politicamente engajados dentro de ditames e paradigmas estabelecidos – conscientes ou inconscientemente – por seus proprietários, acionistas e mesmo pelo público-alvo ao qual pretendam alcançar (Burke, 2004).

No que respeita ao Rio de Janeiro, ainda do século XIX, mormente a partir da Independência, pode-se considerar à grosso modo que era uma cidade iletrada - aliás, um país - cercada de bibliotecas por todos os lados.

Neste ambiente em que a instrução básica e a posse de livros serviam como distintivo social para uma pequena parcela da sociedade. Merece também destaque o uso social do conhecimento possibilitado pelos livros e periódicos (Burke, 2003) por parte destes homens letrados do Rio de Janeiro entre os séculos XIX e XX. Ao analisar discursos políticos do período final da Monarquia, Carvalho (2000) buscou, por meio da retórica, entender a formação intelectual destes agentes públicos e o uso que eles faziam destes conhecimentos em suas alocuções. Segundo o autor, era usual o emprego de citações de autores clássicos como Cícero e Virgílio, ou mesmo de modernos como Goethe, Darwin e Spencer. Era comum o gosto pela sonoridade de palavras inusuais, da valorização do juízo de autoridade mais do que da dedução lógica-racional. Até mesmo em estudos de ciências naturais e médicas, o ensino era quase que completamente baseado em livros, com pouca ou nenhuma prática de laboratório e de utilização do pensamento científico-dedutivo (Agassiz, 2000; Carvalho, 2000). Deste contexto, ao mesmo tempo em que fica evidente um certo pernosticismo, é claro também a importância da posse de livros para as parcelas letradas da sociedade brasileira do final do século XIX.

Os dados dos censos de demográficos de 1872 e 1890 – sem entrar no debate acerca de sua precisão e efetiva cobertura da população – revelam que o analfabetismo é generalizado neste período. Em 1872, a taxa de analfabetismo, analisando o país como um todo, era de aproximadamente 82,3% para as pessoas com 05 anos de idade ou mais. Estes índices caem muito discretamente, para 82,6% no censo realizado em 1890. Os índices podem ser considerados assim quase que inalterados entre as décadas finais do Período Monárquico (1822-1889) e o início da República (1889) (Ferraro & Kreidlow, 2004).

Essa situação de baixa escolaridade era apenas um lado da moeda. Em uma sociedade baseada no trabalho escravo de centenas de pessoas, o letramento era uma alternativa apenas para homens livres e com poder aquisitivo capaz de custear o processo. Apesar de não explicitamente proibido pela constituição do Império, o Decreto Nº 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, do governo do Município da Corte era vedado a escravos o acesso as escolas públicas (Brasil, 1854). Ainda que a Lei Áurea de 1888 tenha abolido a escravidão no Império e a busca pelo progresso e a técnica fossem parte da pauta Positivista que moveu a queda da monarquia ano seguinte, a realidade educacional brasileira pouco mudou entre as últimas décadas do século XIX para o século XX (Braga & Mazzeu, 2017).

A criação de uma biblioteca na Secretaria dos Negócios Estrangeiros – que em 1890 se tornou o MRE (Brasil, 1898) – estava inserida neste contexto paradoxal. Suas origens ao mesmo tempo que remontavam às características das grandes bibliotecas monásticas, caracterizadas pela tradição e distanciamento da realidade social carioca, passou a ser demandada por um pequeno número de usuários ávidos por dados e informações que subsidiassem processos decisórios acerca de realidades práticas, próprias do mundo do início do século XX.

2. Entre o universalismo e o particularismo: as origens da biblioteca do Itamaraty

Nesta cidade repleta de dissonâncias, como foi citado anteriormente, criou-se, a Biblioteca da Secretaria dos Negócios Estrangeiros. A ideia de uma unidade organizacional que administrasse os livros foi mencionada, pela primeira vez por Antônio Peregrino Maciel Monteiro, Barão de Itamaracá (1804-1868), secretário dos estrangeiros no final do período Regencial (1831-1840). Em sua prestação de contas anual ao Parlamento (Brasil, 1838), levantava uma série de demandas necessárias para o bom funcionamento do órgão, dentre elas, mencionou um arquivo e uma biblioteca. Ao expor os motivos para a criação desta última ele afirmava:

... uma biblioteca especial onde se encontrem todas as produções que o desenvolvimento do espírito humano houver de dar à luz, no que respeita à marcha dos governos e às modificações que por ventura se tenha de realizar nas relações das diversas associações políticas (Brasil, 1838, p.18).

A citação consta numa das três grandes seções do documento que trata, em linhas gerais, da política externa do país e das necessidades administrativas do Órgão. Dentre os tópicos elencados pelo autor consta a criação e institucionalização de uma biblioteca, indicada, conjuntamente com um arquivo, como solução para sanar as dificuldades operacionais da Secretaria de Negócios Estrangeiros – problemas, que segundo o autor, se arrastavam desde o período da Independência, em 1822.

A intenção de criar de “uma biblioteca especial” pode ser entendida como uma coleção que se diferenciasse das demais existentes na cidade daquele período, com a ambição de custodiar “(...) todas as produções que o desenvolvimento do espírito humano houver de dar à luz, no que respeita à marcha dos governos (...)” e “(...) das diversas associações políticas” (Brasil, 1838, p. 18). Neste espírito ela deveria ter uma coleção vasta e abrangente.

A temática dos governos é um assunto, desde a Antiguidade, intrinsecamente ligado à questão do Estado. As formas de Estado e dos Sistemas de Governo foram temas centrais no debate sobre a maneira de organização política das sociedades. Neste sentido, o sistema político pode ser entendido como um subsistema da ordem social. As associações políticas, por sua vez, seriam os meios nos quais os cidadãos participariam coletivamente da vida política dos Estados, seja por meio do voto, seja por meio de partidos políticos, que teriam o efeito de catalisar e potencializar a participação dos cidadãos (Bobbio, Matteucci & Pasquino , 1998).

Dentro destas premissas, o futuro Barão de Itamaracá buscava ultrapassar a visão consolidada sobre a razão de ser de uma biblioteca, sem renunciar a sua ideia da grandiosidade de seu acervo. À noção de uma coleção com finalidades universalistas – de armazenar todo o conhecimento produzido pela humanidade nas mais diferentes áreas – somava-se a concepção de uma coleção eminentemente voltada para assuntos de Estado. Devendo assim ser capaz de custodiar toda a amplitude de produções que o “... espírito humano houver de dar à luz...” (Brasil, 1838, p. 18), o que, pela longa trajetória histórica do tema e grande variedade de pensadores dedicados a ele, demandaria uma grande capacidade de armazenamento e um elaborado esforço de gestão.

Entretanto, nota-se que o que se buscava era uma biblioteca especializada – de acordo com o contexto de hoje – que pudesse servir de instrumental para o trabalho executado na Secretaria. Algo, mutatis mutandis, que ele, como médico e advogado conhecia muito bem (Ferreira, 2005), ou seja, uma coleção operacional.

Próximo ao fim do texto, Antônio Peregrino Maciel Monteiro em meio aos argumentos que buscavam convencer sua ilustre plateia a conceder os recursos necessários à Secretaria para as reformas necessárias ele expõe o impacto que imaginava obter caso tais medidas fossem concretizadas:

... esta Repartição venha hum dia á ter aquella physionomia propria de hum estabelecimento de tal ordem, e destinado a entreter as multiplicadas relações existentes entre o Governo do Brasil, e a das outras Potencias do Globo... (Brasil, 1838, p. 18).

Apesar das boas intensões do Barão de Itamaracá a Biblioteca só vem a figurar definitivamente no organograma da instituição durante o II Reinado (1840-1889), com o Regimento Interno de 1842 na gestão do Visconde de Sepetiba (Brasil, 1842). Porém, durante todo esse período ela funcionou de modo precário, confundindo muitas vezes sua atuação com a do Arquivo da Secretaria e valendo-se dos mesmos funcionários. Seu acervo bibliográfico refletia a discrepância entre o programa ambicioso proposto por Maciel Monteiro e a realidade de poucos cuidados aos quais ela era alvo.

Este aparente desinteresse pela efetiva consolidação de uma biblioteca durante o período monárquico pode ser entendido dentro da própria perspectiva da formação institucional do órgão durante o período. O Serviço Exterior brasileiro, bem como a própria diplomacia, tem sua trajetória intrinsecamente relacionadas a formação do Estado Nacional brasileiro. Seu fortalecimento e crescimento estão relacionados tanto a maior institucionalização das estruturas de Estado assim como a uma maior autonomia e liberdade de iniciativa na formulação e implementação da política exterior. Tudo isso lhe permitiu assegurar sua continuidade institucional a longo prazo e reagir a mudanças indesejadas (Cheibud, 1984).

Em novembro de 1889 estabeleceu-se um novo regime no país: a República. A Secretaria dos Negócios Estrangeiros dá lugar ao MRE. Pode-se considerar uma nova biblioteca para novos tempos.

Em janeiro de 1895, durante o governo de Prudente de Moraes (1894-1898), o arquipélago de Trindade e Martins Vaz foi ocupado pela marinha britânica. A notícia só se torna pública após seis meses quando os jornais circulantes na comunidade britânica no Rio de Janeiro anunciaram o fato (Menck, 2009).

O novo regime instituído no Brasil, que herdara questões de limites1 vindas desde o período colonial, agora teria de fazer frente à principal potência neocolonialista de sua época: o Império Britânico. A estratégia escolhida foi a de buscar elementos que garantissem a posse legítima do território. Para isso, deveriam reunir documentos, livros, mapas e quaisquer outros registros que o demonstrassem que aquelas não eram ilhotas esquecidas no meio do Atlântico Sul. Em meio a esses esforços, a Secretaria de Estado – órgão central do MRE – foi surpreendida pela dificuldade de recuperar informações em suas Biblioteca e Arquivo (Kämpf, 2016). Por isso, foi necessário o uso de registros de bibliotecas e arquivos no Brasil e no exterior, assim, o Serviço Exterior do brasileiro conseguiu fazer valer seus direitos sobre Trindade e Martins Vaz (Menck, 2009). Entretanto, ficou evidente a desorganização estrutural e falta de recursos materiais e humanos indispensáveis para a manutenção das coleções documentais da Secretaria de Estado.

Nesta circunstância de crescente tensão e de grandes riscos, para um país militar e economicamente limitado e dependente como o Brasil, o uso de informações que subsidiassem a tomada de decisões e dessem base aos argumentos era um imperativo. Na negociação diplomática as normas vigentes no Direito Internacional e de valores comuns ao mundo civilizado configuravam instrumentos dissuasivos de extrema importância (Castro, 2012). Na sequência dos fatos, iniciaram-se uma série de medidas visando ampliar e melhorar as estruturas físicas e de acervo da biblioteca da chancelaria brasileira.

A ascensão do Barão do Rio Branco à chancelaria em 1902 marca uma mudança na razão de ser da Biblioteca como instituição. Ela deixaria de ser apenas um local de guarda de livros e periódicos e passaria a ser um repositório de informações organizadas que pudessem ser úteis para os interesses do governo e do Estado, ajudando na defesa do interesse nacional; um subsídio relevante na resolução dos problemas vivenciados pelo país na primeira metade do século XX.

Em carta enviada a seu amigo, Frederico Abranches, em agosto de 1902, Paranhos Júnior – que em sua longa permanência na Europa fora um frequentador assíduo de sebos, bibliotecas e livrarias (O Imparcial, 1913, p. 4) – expôs seu pensamento acerca do funcionamento do Ministério nos primeiros anos do período republicano. Ele indicava a necessidade de aumento de pessoal qualificado e emitira comentários, nem sempre elogiosos, sobre a atuação do Diretor-Geral do Ministério, na época, o Visconde de Cabo Frio. Em meio a tudo isso ele afirmava: “É preciso crear uma biblioteca e uma secção geographica na Direcção do Archivo, como na França, Inglaterra, Alemanha, Estados-Unidos” (Carta de José Maria da Silva Paranhos Júnior a Frederico Abranches, 1902, p. 5). Ao desenvolver o assunto, ele justificava tais medidas sob a perspectiva de que “(...) esse é o arsenal em que o Ministro e os empregados intelligentes e habilitados encontrarão as armas de discussão e combate” (Carta de José Maria da Silva Paranhos Júnior a Frederico Abranches, 1902, p. 5).

Trechos desta missiva trocada com Abranches vieram a fazer parte do documento remetido por Rio Branco ao presidente Rodrigues Alves alguns anos depois. Ao mesmo tempo que prestava contas do exercício dos anos anteriores Rio Branco solicitava recursos para seus planos de reforma do serviço exterior brasileiro. Se valendo de modelos existentes em bibliotecas diplomáticas de países europeus argumentava acerca da necessidade de reformular a biblioteca do Ministério:

Não basta ter em deposito livros e papeis: é preciso pessoal habilitado que d’elles cuide e os possa defender contra os estragos do tempo, da traça e do cupim; que se ocupe do catalogo , da organisação de índices, da acquisição de documentos e que saiba tirar partido de todo esse material para as necessidades do serviço de outras secções (Brasil, 1904, p. 85).

Neste relatório, enviado à Presidência do país, Rio Branco indicava que deveria haver o cuidado com a conservação dos materiais, assim como o acompanhamento, registro e recuperação das informações relacionadas aos temas de política externa tratados pelo Ministério. Tudo isso seguido da necessidade de aumento de força de trabalho e sua melhor remuneração (Brasil, 1904, p. 85).

Na época, o cenário brasileiro era de um ambiente político e social conturbado e que passava por transformações. O Governo Rodrigues Alves foi marcado pelas reformas urbanas na capital da República e algumas disputas de territórios com outros países. A chamada Questão do Acre (1899-1903), ainda era um tema presente e o gosto amargo da arbitragem italiana quanto à Questão Roraima (1904), incomodava a diplomacia brasileira (Fausto, 2012).

Desta maneira, no espírito de conferir ao Ministério maior tecnicidade e capacidade operacional, Rio Branco endossou a ideia de romper com a filosofia da biblioteca como guardiã do conhecimento universal para dar lugar à biblioteca como depositária de subsídios para a tomada de decisões em política externa. A obtenção de informações exatas, no tempo certo e armazenadas do modo adequado deveriam se tornar um diferencial estratégico. Isto levou a mudanças na natureza e na forma das aquisições de obras, tal e qual como na própria estrutura física da biblioteca.

3. Uma nova biblioteca de livros antigos

Consoante às reformas pretendidas, a gestão Rio Branco à frente da pasta das relações exteriores vai fazer publicar um novo regulamento em maio de 1906. Nele, grande parte das transformações estruturais pensadas anteriormente foram consolidadas. Por meio do Decreto 6.046 de 24 de maio de 1906 a Biblioteca do Ministério foi desvinculada do Arquivo e se tornou uma unidade organizacional autônoma; ela passaria a ter pessoal e incumbências próprias. Suas funções eram a “guarda, arranjo e conservação da biblioteca”, "a formação do índice (...), do catalogo da bibliotheca e do [acervo] especial, relativo aos mappas, melhorias e documentos sobre limites da Republica” (Brasil, 1906).

A Biblioteca agora teria expectativas e funções específicas, enquadrada dentro dos novos paradigmas que norteariam a gestão do Itamaraty pelas décadas seguintes. O estilo carismático da gestão Rio Branco marcou o declínio de uma diplomacia à La Belle Époque e o prenúncio de um serviço exterior racional-burocrático (Castro & Castro, 2009; Cheibud, 1984).

Quanto aos aspectos técnicos, a Instrução do Gabinete de 30 de novembro de 1906, instituiu uma comissão com a incumbência de reorganizar a velha biblioteca. Chefiada por Antônio Jansen do Paço, então diretor da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, a comissão era formada por oito pessoas entre funcionários da chancelaria, porteiros, carregadores, amauenses entre outros (Brasil, 1930).

A equipe iniciou os trabalhos dentro daquele mesmo mês e uma das primeiras realizações foi fazer um levantamento geral da situação da coleção. Em aproximadamente um ano de atividade foram inventariados aproximadamente 6.540 livros, em sua maioria eram Falas do Trono, atos legislativos de casas brasileiras e estrangeiras, relatórios de atividades de outros ministérios e províncias e coleções de leis. Era notório o mal estado de conservação de alguns volumes e a eliminação de obras em avançado grau de degradação ou que eram entendidos pela Comissão como alheios ao interesse do Ministério (Secretaria Dos Negócios Estrangeiros, 1929).

A conclusão da comissão, após esse diagnóstico, foi a de que o acervo necessitava de medidas urgentes para sua conservação, que a coleção era limitada de obras de áreas entendidas como fundamentais e principalmente, o fato de que o espaço para o depósito das obras era insuficiente. Jansen do Paço indicava dentre outras medidas, aquisição de mobiliário adequado e a criação de uma oficina de encadernação no próprio Ministério, a aquisição de novos acervos e para as questões de estrutura física, novos depósitos (Brasil, 1930).

Importante frisar, contudo, que Ministério havia se transferido do Palacete Bahia, para as novas instalações do antigo palacete do Visconde do Itamaraty em 1897. Os livros ficaram alojados nas dependências anteriormente destinadas a servirem de cavalariças e cocheiras. A caracterização da coleção da Biblioteca até ali, em linhas gerais, ainda era muito próxima daquilo que fora no final do período monárquico, formada principalmente por obras de caráter oficial ou jurídico. O aumento da verba para compra de livros poderia ser uma medida útil nas questões tratadas pelo Brasil naquele momento assim como a assinatura de jornais e revistas (A Biblioteca do Itamaraty, 1979).

O conjunto de medidas adotadas para a resolução dos problemas apresentados pode ser resumido pela busca da construção de um novo prédio, com estrutura de armazenamento adequada para a Biblioteca do Ministério, e pela aquisição por novas coleções. Nos anos que se seguiram ao relatório de Jansen do Paço a gestão Rio Branco se esforçará para levar a cabo estas tarefas. Quanto às características do novo espaço, afirmava-se:

... e ver-se-á que é inevitável a sua remoção para lugar mais amplo e próximo do Archivo (...) ou a construção de um segundo pavimento sobre o do Archivo, - ou a requisição do edifício em que funciona o Supremo Tribunal Militar de Justiça, que já pertenceu ao Ministério das Relações Exteriores e por este foi cedido ao da Guerra (Brasil, 1930, p. 232).

A solução encontrada pelos agentes públicos do Ministério foi, no entanto, a construção de um novo prédio contíguo aos já existentes e que pudesse servir as Seções de Biblioteca e Arquivo. Em um projeto ousado, Rio Branco consegue obter junto ao Congresso a aprovação de verbas para a reforma e construção de diversas outras instalações no antigo Palacete Itamaraty. Para isso, foi contratado Tommaso Gaudencio Bezzi (1844-1915). Amigo do Barão do Rio Branco, Bezzi, engenheiro e arquiteto italiano, notabilizara-se no Brasil pela autoria de edifícios como o do Museu do Ipiranga em São Paulo e do Clube Naval na região central do Rio de Janeiro (Conduru, 2013). O projeto, de linhas ecléticas, bem ao gosto da elite carioca da Bélle Epóque, pode ser visto na Figura 1 logo abaixo. Era composto por amplos salões que receberiam em melhores condições de tratamento e armazenamento (Conduru, 2013).

Figura 1
Fachada da Bibliotheca do Itamaraty.
Fachada da Bibliotheca do Itamaraty.
Fonte: O Imparcial: diário illustrado do Rio de Janeiro (1913, p. 4). Acervo: Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.

Tal processo de reformulação espacial não estava desvinculado dos acontecimentos no próprio Rio de Janeiro durante as chamadas Reformas Pereira Passos (1902-1906). Anos depois, ao rememorar o processo de construção do edifício, o periódico carioca Revista da Semana traz um episódio de cunho pitoresco envolvendo Rio Branco e o referido prefeito.

Certa vez, eu trabalhava nessa época com Pereira Passos, este recebeu de barão do Rio Branco um grande pedido de telhas velhas. Como se faziam então muitas demolições, nada havia de mais fácil. Mas para que podia o barão querer telhas velhas? Encarregado por Pereira Passos de levar-lhe a mais afirmativa das respostas, perguntei-lhe a razão do pedido e ele me explicou: porque se estava construindo no Itamaraty uma ala para a Biblioteca. Ora, nessa ocasião esperava-se a visita de certos estrangeiros ilustres e Rio Branco não queria que percebessem que só então o Itamaraty começara a ter uma biblioteca (Albuquerque, 1929, p. 89).

As apertadas e insalubres salas das cavalariças acabaram por dar lugar a salas de trabalho amplas e arejadas e depósitos de livros com mobiliário adequado e maior capacidade de armazenamento assim como um maior uso de estruturas de metal. Algumas imagens das dependências foram feitas, provavelmente na década de 1920. Nelas é possível visualizar determinados espaços da biblioteca construída na gestão Rio Branco e projetadas por Bezzi conforme pode ser vista nas Figuras 2 e 3 a seguir. Com um pé direito alto e estantes tanto nas paredes laterais quanto e mesas de trabalho ao centro, a área de trabalho otimizava a utilização do espaço e permitia uma melhor circulação dos envolvidos na gestão.

O espaço para o armazenamento dos livros, conforme pode ser visto na Figura 2 abaixo, também era composto por estantes capazes de conter adequadamente os volumes. É perceptível a preocupação com a simetria e organicidade, tendo todos os itens etiquetados em sua parte inferior em uma sala acarpetadas e com estantes iguais. Uma revista do final da década de 1920, faz um registro das dependências da biblioteca e as classifica como confortáveis (Revista Fon-fon, 1929, p. 50).

A construção dos novos espaços erigidos durante o período entre 1902-1912, com as características projetadas por Bezzi e aprovadas por Rio Branco buscavam fazer deles um lugar de preservação da memória institucional. O condicionamento da forma do prédio da biblioteca a suas funções, assim como outros detalhes de sua construção, fazia daquele espaço o espaço da técnica ao mesmo tempo sem abrir mão da manutenção da tradição e da dignidade que se esperava de um edifício de chancelaria. Desta forma, o prédio acabou por se tornar uma materialização do conjunto de reformas políticas e institucionais iniciadas e uma reafirmação dos valores de sobriedade, equilíbrio e tradição projetados pelo Itamaraty. As composições de formas, dimensões, proporções, volumes, texturas, contrastes organizam elementos técnicos e estéticos que expressam uma linguagem arquitetônica. Tais perspectivas, contudo, mais que uma mera questão estilística, contém significados simbólicos que buscam promover permanências do tempo passado no espaço físico e social assim como buscam criar projeções de futuro (Jardim & Pajeú, 2013).

Figura 2
Estantería da Biblioteca do Itamaraty. Sem data.
Estantería da Biblioteca do Itamaraty. Sem data.
Fonte: Palácio do Itamaraty Ilustrações. Inventário: 3292. Acervo: Mapoteca Histórica do Itamaraty.

Neste espírito de tentar sanar as deficiências relativas às coleções houve um esforço concentrado em sua ampliação, seja de documentos bibliográficos seja de documentos arquivísticos. O princípio norteador, aparentemente, seguiu sendo a aquisição de registros em diferentes suportes que pudessem servir de fundamentação histórica para o processo decisório assim como que possibilitassem a comprovação dos princípios postulados pelo serviço exterior brasileiro. O “Jornal do Commercio do Rio de Janeiro” assim relatava um destes episódios:

O Sr Ministro das Relações Exteriores mandou que se reproduzisse com declaração, o fac-simile do primeiro mappa em que apparece a palavra Brasil, (1512) ultimamente mandado adquirir em Roma em leilão muito disputado, para a Biblioteca do Ministério A reproducção trará a declaração de que o original se encontra na Bibliotheca do Itamaraty. Esse mappa, como se sabe, é o primeiro em que se encontra traçado e com a designação de Brasil, o nosso paiz. Somente raros eruditos o conhecem hoje, podendo agora figurar pelo fac-simile em Museus e Bibliothecas de valor (Jornal do Commercio, 1912, p. 8).

A mencionada carta é o curioso mapa mundi do veneziano, Jerônimo Marini de 1512, no qual um trecho da América do Sul aparece nominado como “Brasil”. Destarte como com o referido mapa, o Itamaraty durante a gestão Rio Branco buscou adquirir coleções bibliográficas. Segundo a sugestão de Jansen do Paço esta foi a forma de resolver as carências de acervo da Biblioteca.

Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), Visconde de Porto Seguro, foi um militar e diplomata brasileiro. Notabilizou-se como o autor da primeira grande obra dedicada à história nacional: História Geral do Brasil, publicada entre 1854 e 1857. Enquanto atuou no serviço exterior brasileiro operou no esforço de prospectar, coletar, organizar e analisar documentos históricos em diferentes partes do mundo (Guimarães & Glezer, 2013). Estes ajudaram tanto a construir a trajetória do país como a consolidar suas fronteiras. Seus estudos e pesquisas ficaram registrados tanto em sua grande biblioteca assim como em numerosos pareceres, relatórios e informes enviados para a chancelaria assim como para imperador Pedro II, sobretudo quanto às negociações de limites do império com as repúblicas hispano-americanos e as Guianas (Neves & Neves, 2013).

Adolpho de Varnhagen morreu em Viena, Império Austríaco, em 16 de dezembro em 1878, deixando esposa, a chilena Carmen Ovalle Vicuña, e dois filhos, Xavier e Luís Porto Seguro. Em um primeiro testamento redigido no Rio de Janeiro em 1861, Adolpho Varnhagen expressava o desejo de doar seu acervo à Academia de História de Madrid, “(...) não só pela gratidão que lhe devo, como pela certeza de que nesse clima se conservaram melhor algumas das preciosidades que contem” (Testamento de Varnhagen, 1868). No entanto, outro documento é redigido em Lisboa. Nele, não havia menção aos acervos. Este último foi lido e executado em Viena após sua morte. Com isso, a família retorna para a capital chilena nos anos seguintes e leva consigo todo o acervo de livros, documentos textuais e mapas que pertenceram ao diplomata (Bueno, 2002).

Em 1904, seu filho, Luis Porto Seguro – deputado e diplomata chileno – faz publicar em Santiago o Catálogo de la Biblioteca Varnhagen (Bueno, 2002). Pouco tempo depois, o cônsul chileno no Rio de Janeiro, Samuel Gracie, apresentou ao Barão do Rio Branco a publicação e sugeriu ao chanceler a possibilidade dos herdeiros de Varnhagen aceitarem vender a coleção. O representante brasileiro no Chile, Alfredo de Moraes Gomes Ferreira foi acionado em 1908, no sentido de procurar a família e apresentar o interesse do Itamaraty na aquisição. Em junho do ano seguinte, o filho de Varnhagen aceita a proposta e vende todo o acervo – bibliográfico, textual e cartográfico – por 21 contos de réis, ou aproximadamente 1.312 libras esterlinas, valor bastante elevado para a época (Bueno, 2002).

A solenidade e a formalidade que marcaram a negociação, contudo, não se fizeram sentir no processo de transferência da coleção. A mudança até o Brasil foi marcada por contratempos. O acondicionamento das obras para a viagem oceânica não foi o adequado e não houve um controle rigoroso do material embarcado. Dos 4.972 títulos presentes no Catálogo de la Biblioteca apenas 4.156 chegaram à Biblioteca do Itamaraty. Apesar disto, desde o final do século XIX, obras pertencentes à Coleção Varnhagen, estão dispersas em diversas instituições tanto no Brasil como no exterior. Tanto a Biblioteca Nacional do Brasil, quanto a biblioteca Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB – como o bibliófilo Rubem Borba de Moraes possuem obras que pertenceram ao Visconde de Porto Seguro. O acervo deste último acabou sendo adquirido pela Coleção Brasiliana de José Mindlin (Almeida, 2016).

Ao descrever a coleção, o Relatório Anual do Ministério o faz nestes termos:

A coleção Varnhagen demonstra a paciência de pesquisador de alfarrábios daquele eminente publicista e que lhe valeu poder reunir volumes e folhetos preciosíssimos, principalmente para a historia e a literatura nacionaes, entre os quaes se encontram até incunábulos (Brasil, 1930, p. 127).

A coleção de livros possui 4.156 títulos em um arco temporal entre os séculos XV e XVIII. Com obras voltadas principalmente para assuntos como História do Brasil e História Geral, História Diplomática, Geografia, Roteiros de Viagem, Direito, Artes, Literatura entre outros.

Joaquim Thomaz do Amaral (1818-1907), segundo Visconde de Cabo Frio, foi funcionário do serviço exterior brasileiro desde o início do II Reinado, desempenhando quase todos os cargos e atuando em questões importantes para a política externa da segunda metade do século XIX e no início do século XX. Iniciou sua carreira atuando como juiz da Comissão Mista Brasil – Grã-Bretanha de combate à escravidão em Serra Leoa. Atuou também na Grã-Bretanha, Uruguai, França, Bélgica. Suas injunções junto ao rei belga foram determinantes para o parecer favorável ao Brasil quando da Questão Christie que envolvia a Grã-Bretanha na década de 1860, assim como seu parecer acerca da navegação na fronteira entre o Brasil e o Uruguai em 1889. Foi elevado ao cargo de Diretor-Geral do Ministério em 1865, mantendo-se no posto mesmo com a Proclamação da República até sua morte, em janeiro 1907, já durante a gestão Rio Branco (Amaral, 2008, 2009).

Apesar de suas diferenças com o Barão do Rio Branco, Thomaz do Amaral foi homenageado ainda em vida pelo chanceler com um busto em bronze instalado nas dependências do palácio Itamaraty (Amaral, 2008). O Ministério adquire junto a família os acervos arquivístico e bibliográfico do ex-diretor geral em novembro de 1909. Seus mais de quarenta anos como diretor-geral e sua atuação diplomática faziam dele uma testemunha ocular da evolução das grandes questões de política externa, um garantidor da continuidade de atuação diplomática e um elo entre o serviço exterior da Monarquia e a República.

Sua coleção contava com cerca de 1.012 títulos, somando 1.336 volumes com obras em sua maioria em francês, inglês e espanhol. Com datas entre o século XVIII e XX, a coleção era composta por assuntos como Política, Direito, Relações Internacionais, História, livros religiosos, Literatura e Poesia. Ao mesmo tempo em que havia livros de autores clássicos como Cícero e Sêneca, também existiam obras de autores como Voltaire e Lord Byron. Outra parte importante de seu acervo está em seu conjunto de livros de aventura de exploradores europeus na África e outros que descreviam lugares distantes como China, Turquia e Rússia.

A biblioteca possuía em 1904, aproximadamente 5.775 obras. Com o acréscimo das Coleções Varnhagen e Cabo Frio, assim como de outras enviadas pelas representações brasileiras no exterior, possuía em 1912, algo em torno de 11.708 obras (Brasil, 1930). Diante do crescimento, para que ela alcançasse plenamente a finalidade de servir de fonte de dados e informações, seria necessário encontrar formas de torná-la acessível aos formuladores e agentes da política externa. Nesse sentido, buscavam-se meios de organizar e de fazer representar as obras ali custodiadas.

As tentativas de se melhorar a organização da Biblioteca, empreendidas no início da gestão Rio Branco, visavam criar condições de controlar e facilitar o acesso aos dados e informações. A comissão destinada à reorganização da biblioteca atuou no sentido de e ordená-los permitiria uma gestão integrada e um acesso mais rápido e facilitado ao conjunto de conhecimentos teóricos e práticos acumulados pela chancelaria brasileira.

No relatório enviado por Jansen do Paço ao Barão do Rio Branco em 1904, ele expõe parte do método utilizado para a organização da biblioteca. A Comissão dedicou-se à criação de um inventário no qual haveria o levantamento de todas as obras existentes e o rearranjo físico dos acervos. Buscando dividir os livros em “obras antigas” e “acréscimos”, foram levantados a existência física daqueles indicados nos registros anteriores assim como foram acrescentados dados como: ano de publicação, volume, tipografia, formato, aditamentos e erratas, quantidade de páginas e “outras observações uteis para quem precise consultar cada um dos volumes” (Brasil, 1930, p. 231). O redator do relatório ainda afirmava a impossibilidade de manter-se a lógica de organização dos documentos bibliográficos existente até aquele momento, devido ao acréscimo de novos volumes e as limitações estruturais do espaço e dos mobiliários.

Contudo, os métodos e processos utilizados para busca e recuperação de dados e informações não são processos estanques. Sua construção registra uma série de conceitos e ideias acerca das percepções de homem, de natureza e de sociedade vigentes em sua época e relevantes para a sociedade na qual estão inseridas. E como tal, estas concepções são socialmente estabelecidas e historicamente condicionadas. Logo, os procedimentos adotados por Jansen do Paço, mais que uma iniciativa própria, refletiam séculos de diferentes esforços acerca da elaboração de parâmetros e princípios acerca da formação e organização de coleções bibliográficas.

O processo de organização das coleções recém-adquiridas, contudo, teve por base tanto organizações anteriores da própria Biblioteca do Itamaraty como aqueles existentes nas Coleções Varnhagen e Cabo Frio. O Visconde de Porto Seguro, foi responsável na década de 1850 pela organização da biblioteca do IHGB (Guimarães y Glezer, 2013), sua coleção pessoal possuía uma listagem minuciosa (Catálogo de la Biblioteca Varnhagen, 1904), e todo o processo de aquisição por parte do MRE baseou-se na obra Catálogo de la Biblioteca Varnhagen feito postumamente por seu filho. A aquisição da Coleção Cabo Frio foi feita pouco depois de sua morte, deixando pouca margem para dispersão do conjunto. Contudo, ambos os acervos possuíam itens dedicados à formação e organização de bibliotecas (Catálogo Cabo Frío). Para além deste, merece atenção a existência de obras acerca da criação e organização de coleções de livros tanto na Biblioteca do Itamaraty quanto na Coleção Cabo Frio, a Manuel du Libraire et de l’amateur de livres do autor francês Jaques Brunet.

A análise dos instrumentos de busca e recuperação da informação existentes tanto na Coleção que pertencera a Adolpho de Varnhagen, assim como ao Barão de Cabo Frio são uma tarefa ainda a ser realizada. Um estudo historicamente contextualizado acerca dos processos de aquisição, organização e representação de suas obras pode oferecer uma série de informações importantes não apenas sobre seus proprietários e sua atividade diplomática ou intelectual, como também sobre a formulação de políticas e na tomada de decisões na esfera das relações exteriores do período.

Todas as medidas relativas às Bibliotecas também se faziam sentir em outras áreas do Ministério. O prestígio de Rio Branco era crescente na primeira década do século XX. Apesar de todos os seus esforços em manter uma estrutura elitista e de manutenção da tradição, as mudanças iniciadas no Ministério e o padrão implantado por ele na condução da política externa, em muito diferiam da vacilante estrutura dos demais órgãos da Primeira República.

O Barão do Rio Branco veio a falecer em 10 de fevereiro de 1912, antes que as obras do novo prédio projeto por Bezzi estivessem concluídas. Antônio Jansen do Paço, chefe da comissão de reorganização da biblioteca morre em 1916, ano da inauguração do edifício. O descerramento da placa acabou ganhando as configurações de homenagem póstuma ao chanceler. A Biblioteca do Itamaraty passou a chamar-se Biblioteca Barão do Rio Branco e incorporou a própria Coleção de livros de Paranhos Júnior (A Federação, 1915, p. 2), e consequentemente com ela veio a coleção de seu pai, o ex-ministro do império Visconde do Rio Branco. Em uma matéria de capa, com ilustração, o jornal “A Noite” do Rio de Janeiro descreveu assim a cerimônia de descerramento da placa de inauguração da edificação:

Ao visitar a bibliotheca do Itamaraty o Dr. Wenceslao Braz teve occasião de apresiar varios objectos que ali se acham como um relógio que pertenceu a D. João VI, varios quadros celebres (...) A bibliotheca do Itamaraty, que passou a ter a denominação de Rio Branco, e que o Sr. Presidente da República inaugurou sem discurso, foi reorganisada pelos funccionarios do ministerio Drs. Galvão Bueno Filho, Gaspar Minterde e Juvenal Mesquita, que mereceram louvores do ministro pela dedicação à tarefa de que se desobrigaram (A Noite, 1916, p. 10).

A política de formação de coleções implantada por Rio Branco prosseguiu nos primeiros anos após sua morte. O Ministério posteriormente continuou adquirindo novos conjuntos de livros. Exemplo disso foi a coleção do diplomata mineiro Miguel Gastão da Cunha, próximo ao Barão, que seria embaixador brasileiro em países como Portugal, Espanha, Dinamarca, Noruega e na Liga das Nações (Dangelo, s./f.). Um periódico gaúcho ao repercutir este fato assim o narra:

A biblioteca do Ministerio das Relações Exteriores tem se enriquecido nestes ultimos annos com uma serie de acquisições notaveis, que a têm nivelado com as melhores colleções do Brasil; ali estão as bibliotecas do barão do Rio Branco, Adolpho Varnhagen, Carlos de Carvalho e visconde de Cabo Frio”. (...) Ainda agora o dr. Gastão da Cunha, sub-secretario de Estado das Relações Exteriores, offertou à biblioteca do Itamaraty uma notavel collecção de obras sobre historia e politica americana da qual fazem parte collecções completas dos antgos historiadores, de revistas de varios institutos historicos americanos, folhetos raros sobre varios pontos da historia do nosso continente (A Federação, 1915, p. 2).

A aparência final do prédio pode ser vislumbrada por meio da Figura 3 logo abaixo. O edifício em estilo eclético emoldurado por palmeiras imperiais e um jardim ao estilo francês em meio ao agitado centro da capital da república e em frente à avenida mais movimentada à época. Um articulista assim o descreveu: "A bibliotheca tem a sua fachada propria no jardim do palacio, ornado de belas palmeiras em sítio tranquillo e apropriado ao estudo e à meditação, longe do barulho e estardalhaço da rua Marechal Floriano" (O Imparcial, 1913, p. 4).

Figura 3
Estantes da Biblioteca do Itamaraty. Sem data.
Estantes da Biblioteca do Itamaraty. Sem data.
Fonte: Palácio do Itamaraty Ilustrações. Inventário: 5.155 Cl56-2-1b. Acervo: Mapoteca Histórica do Itamaraty.

Para além de seus elementos arquitetônicos, o uso que se deu à biblioteca a partir de então, pode ser visto no testemunho do “Jornal do Commercio do Rio de Janeiro” acerca da atuação do diplomata Sylvino do Amaral enquanto agente da política externa brasileira:

(...) Por occasião do seu recente regresso a esta Capital, accentuámos, ao resumir a sua acção nos postos que tem occupado, a dedicação com que o Dr. Silvino do Amaral serve à carreira que abraçou, na qual o guia a melhor das condições de éxito - a vocação. Completa a sua personalidade diplomatica o interesse com que estuda e esmiuça as questões, orientando-se para a sua solução, nas mais autorizadas fontes. Nesta sua estadia entre nós, foi o Ministro Silvino do Amaral um diario frequentador da biblioteca do Itamaraty, cujos documentos de sua nova missão à qual saberá, de certo, dar o brilho das anteriores (Jornal do Commércio, 1913).

Silvino Gurgel do Amaral (1874-1961) atuou no serviço exterior brasileiro entre 1896 e 1934 atuando em diferentes postos na Europa, na América e na Ásia. O referido episódio ocorreu às vésperas de sua ida como embaixador em Assunção. Merece destaque o fato narrado no trecho acima, de que buscava nas obras presentes na biblioteca fontes de informação segura de modo que subsidiassem a resolução de questões acerca do posto ao qual iria assumir. Com isso, a intenção do Barão do Rio Branco em fazer da Biblioteca uma espécie de “arsenal” de “armas de discussão e combate” começou a ganhar forma (Carta de José Maria da Silva Paranhos Júnior a Frederico Abranches, 1902, p. 2)

Isto feito, o período da gestão Barão do Rio Branco à frente da pasta das Relações Exteriores significou um ponto de virada na trajetória da Biblioteca assim como do Itamaraty. Ela se tornou como que um marco simbólico para a criação do Itamaraty moderno, iniciando o movimento de transição do patrimonialismo e do clientelismo que caracterizavam a gestão pública imperial para uma administração profissionalizada (Cheibud, 1984). Para a formação das coleções de documentos bibliográficos, ele iniciou um processo de aquisição de coleções particulares de diversas personalidades relacionadas à política externa. O vínculo entre a trajetória do Barão com a biblioteca ficou registrado por um jornal da época:

Entretanto no Itamaraty, Rio Branco reformou e quasi creou o interior dos seus velhos salões, ornamentando-os com gosto e, fé para os costumes nacionaes, com luxo. Mas, o mais perdurável dessas reformas foi a da Bibliotheca, enriquecida de valiosos documentos de difícil e até impossível acquisição em algumas especies. Era ainda a, creação do blibliomano, roubado às suas paixões predilectas. (O Imparcial, 1913, p. 4)

Contudo, apesar do acréscimo de valor que as melhorias de espaço físico e de acervos possibilitaram para o serviço exterior brasileiro durante a “Era Rio Branco”, significando uma ruptura com as expectativas e possibilidades que se desenhavam para uma biblioteca no Rio de Janeiro do início do século XX, ela também representou algumas continuidades. O mesmo jornal citado acima agrega logo em seguida: "Não é conhecida senão de poucos e não admira, quando do proprio palacio de Itamarati apenas se conhece a vulgarissima fachada (...)." (O Imparcial, 1913, p. 4). Neste sentido, seu isolamento e tranquilidade mantinham a solenidade das bibliotecas monásticas, sua arquitetura remetia à institucionalidade das bibliotecas estatais e seu distanciamento da população em geral a faziam se assemelhar as outras bibliotecas oitocentistas.

A aquisição das Coleções Varnhagen e Visconde de Cabo Frio, pelo lastro e antiguidade de seus antigos proprietários, acabou por manter viva a ideia universalista de custodiar as mais diferentes manifestações do pensamento humano sobre a assuntos de estado e de governo propostas por Antônio Maciel, porém dentro de uma perspectiva mais pragmática e utilitarista proposta por Rio Branco e sua luta pela sustentação das fronteiras nacionais em meio à agressiva política internacional da Era dos Impérios. Assim, os empregados inteligentes e habilidosos projetados por Rio Branco conseguiram ter na Biblioteca do Itamaraty os subsídios necessários para defender os interesses nacionais e contribuir para que, assim como expôs Monteiro Lobato, o país fosse construído por homens e livros.

Fontes

A Federação (10 de abril de 1915).

Albuquerque, M. E. (1929). A rapariga que fez 25 anos. Revista da semana, 12.

A Noite. (10 de febrero de 1916).

Brasil. (1842). Decreto n.135, de 26 de fevereiro de 1842. Reformando a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, em virtude do artigo 39 da lei 243 de 30 de novembro de 1841. Rio de Janeiro: Câmara dos Deputados.

Brasil. (1854). Decreto Nº 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854. Aprova o Regulamento para a reforma do ensino primario e secundario do Municipio da Côrte. Rio de Janeiro: Câmara dos Deputados. Recuperado de: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1331-a-17-fevereiro-1854-590146-publicacaooriginal-115292-pe.html

Brasil. (1906). Decreto n. 6.046, de 24 de maio de 1906. Dá novo regulamento a Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Rio de Janeiro: Câmara dos Deputados. Recuperado de https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-6046-24-maio-1906-583099-norma-pe.html

Brasil. Ministério das Relações Exteriores. (1898). Relatório do Ministério das Relações Exteriores apresentado ao presidente da República dos Estados Unido do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores General de Brigada Dionísio E de Castro Cerqueira em 12 de julho de 1898.

Brasil. Ministério das Relações Exteriores. (1904). Relatório do Ministério das Relações Exteriores apresentado ao presidente da República dos Estados Unido do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores compreendendo o período decorrido de 28 de maio de 1902 a 31 de agosto de 1903.

Brasil. Ministério das Relações Exteriores. (1930). Relatório apresentado ao presidente da república dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores: anno de 1929. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. Recuperado de http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=873934&pagfis=19520

Brasil. Secretaria dos Negócios Estrangeiros. (1838). Relatório da repartição dos negocios estrangeiros apresentado à Assemblea Geral Legislativa na sessão ordinária de 1838 pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Antonio Peregrino Maciel Monteiro.Rio de Janeiro: Tipographya Nacional.

Carta de José Maria da Silva Paranhos Júnior a Frederico Abranches (7 de agosto de 1902).

Catálogo de la Biblioteca Varnhagen. (1904). Santiago de Chile: Imprensa Moderna.

O Imparcial. (16 de diciembre de 1913).

Jornal do Commercio. (12 de mayo de 1912).

Jornal do Commercio. (27 de marzo de 1913).

Naudé, G. (1627). Advis pour dresser une bibliothèque. Paris: A Paris, chez François Targa.

Revisa Fon-Fon. (6 de enero de 1929).

Testamento de Varnhagen. (12 de mayo 1868).

Referências

A Biblioteca do Itamaraty. (1979). Revista da Academia Paulista de Letras, 112-120.

Agassiz, J. L. R. (2000). Viagem ao Brasil 1865-1866. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial.

Almeida, P. R. (2016). Síntese biográfica de Francisco Adolfo de Varnhagen. En S. E. M. Lima (Org.), Varnhagen(1816-1878): diplomacia e pensamento estratégico (pp. 16-39). Brasília: FUNAG.

Amaral, L. G. (2008). O meu velho Itamarati. Brasília: FUNAG.

Amaral, J. T. (2009). Navegação da lagoa Mirim e do rio Jaguarão. Cadernos do CHDD, 8(15), 255-316.

Battles, M. (2004). Widener: biography of a library. Cambridge, Mass: Harvard University Press.

Bobbio, N., Matteucci, N. & Pasquino, G. (1998). Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília.

Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus.

Braga, A. C. & Mazzeu, F. J. C. (2017). O analfabetismo no Brasil: lições da História. Revista On-Line de política e gestão educacional, 21(1), 24-46.

Bueno, M. L. C. (2002). Catálogo da Coleção Varnhagen da Biblioteca do Itamaraty. Brasília: FUNAG, CHDD.

Burke, P. (2003). Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Burke, P. (2004). Testemunha ocular: História e imagem. Bauru: EDUSC.

Carvalho, J. M. (2000). História intelectual do Brasil: a retórica como chave de leitura. Revista Topoi, 1(1), 123-152.

Castro, F. M. O. & Castro, F. M. O. (2009). Dois séculos de história da organização do Itamaraty (1808-2008). Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão.

Castro, T. (2012). Teoria das relações internacionais. Brasília: FUNAG.

Cervo, A. L. & Bueno, C. (2008). História da política exterior do Brasil. Brasília: UnB.

Chartier, R. (1993). Texto, impressão, leituras. En L. Hunt, A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes.

Cheibud, Z. B. (1984). Diplomacia, diplomatas e política externa: aspectos do processo de institucionalização do Itamaraty [Tesis de maestría]. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

Conduru, G. F. (2013). O Museu Histórico e Diplomático do Itamaraty: História e revitalização. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão.

Dangelo, A. G. D. (s./f.). O Embaixador Gastão da Cunha e São João Del‐Rei. Recuperado de https://saojoaodelreitransparente.com.br/files/docs/Embaixador_Gastao_da_Cunha_e_Sao_Joao_del-Rei_(Algumas_notas_Biograficas)_-_Andre_Guilherme_Dornelles_Dangelo.pdf

Fausto, B. (2012). História do Brasil. São Paulo: EDUSP.

Ferraro, A. R. & Kreidlow, D. (2004). Analfabetismo no Brasil: configuração e gênese das desigualdades regionais. Educação & Realidade, 29(2), 179-200.

Ferreira, T. B. T. C. (2005). O que liam os cariocas no século XIX. Em XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Recuperado de https://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2010/resumos/R5-3140-1.html

Guimarães, L. M. P. & Glezer, R. (2013). Introdução. En L. M. P. Guimarães y R. Glezer (Org.) Varnhagen no caleidoscópio (pp. 11-25). Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes.

Jacob, C. (2000). Prefácio. En M. Baratin, O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente (pp. 65-89). Rio de Janeiro: UFRJ.

Jardim, E. A. & Pajeú, H. M. (2013). Chá e champahne com duas velhas senhoras: a arquitetura das estações Luz e Júlio Prestes no contexto ideológico da elite cafeeira paulista dos séculos XIX e XX. En N. R. Gaspar, et al. (Org.), Discurso e leitura de imagem (pp. 73-86). São Carlos: Pedro & João Editores.

Kämpf, M. N. (2016). Ilha da Trindade: a ocupação britânica e o reconhecimento da soberania brasileira (1895-1896). Brasília: FUNAG.

Koselleck, R. (2014). Estratos do Tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio.

Lobato, M. (1932). Américas: os Estados Unidos de 1929. São Paulo: Companhia Editora Nacional.

Luca, T. R. (2011). História dos, nos e por meio de dos periódicos. En C. Pinsky (Org.), Fontes históricas (pp. 111-154). São Paulo: Contexto.

Magnoli, D. (1997). O corpo da pátria imaginação geográfica e política externa no Brasil. São Paulo: Unesp.

Menck, J. T. M. (2009). A Questão do Rio Pirara (1829-1904). Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão.

Neves, L. M. B. P. & Neves, G. P. (2013). Um bibliófilo liberal: Varnhagen, diplomata nas repúblicas do Pacífico (1863-1867). En L. M. P. Guimarães y R. Glezer (Org.), Varnhagen no caleidoscópio (pp. 55-95). Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes.

Nora, P. (1993). Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto história, 10, 7-28.

Wilcken, P. (2005). Império à deriva: a corte portuguesa no Rio de Janeiro: 1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva.

Notas

1 Questão de Palmas – Contencioso em Relações Internacionais, entre os governos da Argentina e do Brasil, entre 1890 e 1895, que disputaram áreas situadas entre a província argentina de Missiones e os Estados brasileiros de Santa Catarina e Paraná (Cervo y Bueno, 2008).

Questão do Amapá – Contencioso em Relações Internacionais entre o Brasil e a França entre 1894 a 1900, acerca do limite entre o Estado do Amapá e a Guiana Francesa (Cervo y Bueno, 2008).

Recepción: 30 Agosto 2023

Aprobación: 20 Febrero 2024

Publicación: 01 Abril 2024

ediciones_fahce
Ediciones de la FaHCE utiliza Marcalyc Sistema de Marcación, herramienta desarrollada con tecnología XML-JATS4R por Redalyc
Proyecto académico sin fines de lucro desarrollado bajo la iniciativa Open Access